9 de maio de 2019

Caminhada SP Negra: conheça a história negra da cidade a pé

Já fazia bastante tempo que eu queria fazer a Caminhada SP Negra, um tour pelo Centro de São Paulo contando a história negra da cidade, que foi invisibilizada e até esquecida. Conheci o tour por indicação da Cris Marques, uma amiga muito querida que escreve o blog Raízes do Mundo.

Guias lideram a Caminhada SP Negra - Foto: Henrique Carrara

Guias lideram a Caminhada SP Negra – Foto: Henrique Carrara

Combinei várias vezes com o Guilherme, da Blackbird Viagens (que organiza o tour), mas ainda não era o momento de fazer. Compromissos, chuvas e outros percalços adiaram por algum tempo, mas agora no fim de abril eu finalmente consegui. E valeu a pena esperar!

 

Liberdade, o começo Caminhada SP Negra

A Caminhada SP Negra começa no bairro da Liberdade - Foto: Henrique Carrara

A Caminhada SP Negra começa no bairro da Liberdade – Foto: Henrique Carrara

A saída é da Praça da Liberdade, no bairro da Liberdade, hoje conhecido como o bairro japonês de São Paulo e que aos domingos tem uma feira gastronômica e de artesanato bem legal.

Mas já foi ali o 1° impacto. O nome do bairro tem origem negra! Sabia dessa? Eu sempre me perguntei os motivos do bairro chamar Liberdade, mas nunca fui atrás pra me dar as respostas. Em dado momento da História, a região era o “pelourinho” de SP, onde pessoas escravizadas que eram contra o sistema eram açoitadas ou mortas publicamente para “dar o exemplo” pra que outros não fizessem o mesmo. Em frente à Igreja Santa Cruz da Alma dos Enforcados, que está lá até hoje, ficava o Largo da Forca.

Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados e o Edifício Martinelli

Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados e o Edifício Martinelli

E, nesse período, o cabo Francisco José das Chagas (ou Chaguinhas) se rebelou porque não recebia salário por ser negro. Foi levado ao pelourinho pra ser enforcado. A corda arrebentou. O povo achou estranho e pediu para os oficiais pra não o matar pois era um sinal divino. Os algozes não deram bola e mandaram o enforcar novamente. A corda arrebentou pela 2ª vez e o povo começou a gritar “Liberdade, liberdade, liberdade”. Os gritos foram ignorados e Chaguinhas foi morto mesmo assim, mas o nome da praça ficou.

Hoje, no local, há um monumento em homenagem à imigração japonesa, mas não há absolutamente nenhuma menção a esse fato da história negra paulistana, o que é um tanto bizarro.

 

Histórias invisibilizadas que precisam ser contadas

Ladeira da Memória, ao lado do metrô Anhangabaú

Ladeira da Memória, ao lado do metrô Anhangabaú

Essa é uma das tantas histórias não-contadas que a Caminhada SP Negra traz à tona pra que elas não morram ou caiam no esquecimento.

Liderado por 3 guias, o grupo caminha por aproximadamente 3h. Cada participante do tour, logo no início, ganha uma bolsa de pano com uma garrafa de água, um biscoito e o folheto com o itinerário do dia e algumas informações.

Em todo percurso, quem está acostumado a fazer walking tour em países que valorizam sua história sentirá falta de placas e monumentos que contem essa história pra população atual, pras novas gerações e pros visitantes.

O turismo no Brasil infelizmente sofre com esse mal. Nesse momento que vivemos, então, contar a história como ela de fato aconteceu parece cada vez mais distante. 🙁

E justamente por isso, a Caminhada SP Negra é não só muito legal como tour e produto turístico, mas também extremamente necessária.

 

Explorando Sampa e arredores

Bandeira do Brasil, que já me deu mais orgulho, no centro de SP

Bandeira do Brasil, que já me deu mais orgulho, no centro de SP

Como se descobrir essas histórias não fosse o bastante, o tour nos faz olhar pra cidade e redescobri-la, passando por lugares tão comuns do dia-a-dia que acabamos nos esquecendo da importância e beleza que o Centro tem escondida embaixo da aparente sujeira, miséria e agito comercial.

O roteiro tem 10 paradas:

  • Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados
  • Largo 7 de Setembro (Pelourinho)
  • Igreja Nossa Senhora da Boa Morte
  • Estátua Zumbi dos Palmares
  • Largo São Francisco
  • Ladeira da Memória
  • Rua 7 de Abril
  • Galeria do Reggae
  • Largo do Paiçandu
  • Largo do Arouche

Conhecemos tão pouco nossa história que é provável que nem esses nomes moradores da cidade reconheçam (me incluo nisso).

Caminhada SP Negra: grupo em frente à estátua de Zumbi dos Palmares

Caminhada SP Negra: grupo em frente à estátua de Zumbi dos Palmares

Um dos pontos mais surpreendentes foi a Estátua de Zumbi dos Palmares que fica ali perto do Edifício Martinelli, o 1° arranha-céu de São Paulo, e do Edifício Altino Arantes, hoje conhecido por Farol Santander e que imita o Empire State de Nova York.

Ali pudemos, inclusive, conhecer a história da avó do Zumbi. Aqualtune era uma princesa vinda da África, que chegou ao Brasil como pessoa escravizada e não se conformou com isso. Foi uma das fundadoras do Quilombo dos Palmares e inspirou muitas outras pessoas na região.

Aliás, pra quem tiver interesse, a Blackbird está organizando uma viagem pra Palmares (União dos Palmares, no estado de Alagoas) em novembro, próximo do feriado da Consciência Negra. Quem tiver interesse, entre em contato com eles pra mais informações. Aliás, você sabia que Palmares é uma um lugar ainda existente hoje ou só associava o nome ao Quilombo?

 

História de Escravidão, Monarquia e República do Brasil

A região da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco se junta com a história de Luiz Gama

A região da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco se junta com a história de Luiz Gama

Na época da Monarquia, as pessoas com pensamento mais à esquerda no espectro político e que também eram contra o sistema resolveram fundar o Partido da República.

Luiz Gama, negro e advogado autodidata que ajudou a libertar mais de 500 pessoas da escravidão, se uniu aos que eram contra a Monarquia e ajudou a fundar o partido, mas saiu logo em seguida. O motivo? Os brancos do partido se recusaram a incluir a abolição em seu estatuto. 🙁 Uó, né?

A Lei Áurea, que todos conhecem como o “fim da escravidão” e a atribuem ingenuamente somente à “benevolência” da Princesa Isabel, tornou a data em que foi assinada, em 1888, uma data cívica sendo considerada feriado 2 anos depois. Não, more, não é o feriado de novembro. Foi em 13 de maio. Aí você me pergunta “mas a gente tem um feriado no dia 13 de maio?”. E eu respondo: nós tínhamos, até 1930 quando Getúlio Vargas o revogou. Aí você me pergunta “mas por quê ele fez isso?”. E eu te respondo: é preciso muito mais que lógica pra entender nossos políticos.

Veja onde estamos hoje… 🤷‍♂️

 

História Negra recente

Galeria do Reggae, em frente ao Sesc 24 de Maio, importante para os imigrantes negros

Galeria do Reggae, em frente ao Sesc 24 de Maio, importante para os imigrantes negros

Trazendo a história para os dias mais próximos dos nossos, a Caminhada SP Negra também contou em detalhes a história de Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. Ela foi a primeira autora brasileira a ser traduzida pra outros idiomas (foram 14 línguas). Foi uma das primeiras escritoras negras do país e é considerada uma das mais importantes.

Contava, nesse livro, sua história como moradora de favela. Fez sucesso e conseguiu juntar dinheiro pra comprar uma casa de alvenaria, que viria, inclusive a ser o título de seu segundo livro, lançado em 1961.

Mesmo tendo ficado super conhecida e popular, a carreira da autora acabou em declínio após 5 anos. Ela sofria preconceito nos meios que circulava e seus editores queriam que ela só publicasse histórias de dor, como no 1° livro. Mas ela já queria falar de outras coisas. Não deu certo, ela caiu no esquecimento e virou catadora de papel novamente. 🙁

Ela não era aceita pelos editores. Não era aceita pela sociedade civil quando comprou sua casa de alvenaria por sua cor. E, quando voltou a catar papel, sofria preconceito até dos catadores, que não acreditavam que uma autora renomada precisava catar papel e tomar o lugar deles. Quantas Carolinas não passam por isso diariamente?

Outro livro indicado durante o tour e que fica como leitura complementar, pra quem quiser, foi o Meu Caminhar, Meu Viver, de Valdina Pinto (conhecida também como Makota Valdina).

 

Impressões sobre a Caminhada SP Negra

No fim do tour, aprendemos sobre a controversa estátua da Mãe Preta

No fim do tour, aprendemos sobre a controversa estátua da Mãe Preta

Eu amei o tour, trouxe muitas histórias interessantes e explicou muito da história da cidade que quem mora aqui não conhece. Só contei algumas das histórias e não todos os detalhes do tour aqui porque quero que vocês façam ele. Vocês não vão se arrepender. 🙂

Alguns pontos legais de mencionar são as terminologias. Assim como pra nós LGBT+, as palavras e nomes têm poder. Foi interessante saber que devemos falar pessoas escravizadas e não escravos, por exemplo. Um aprendizado que é óbvio mas eu nunca tinha parado pra pensar.

Outra coisa que já perguntei pra vários amigos é sobre usar negro em vez de preto. Apesar de ouvir sugestões e argumentos dos 2 lados, o que é mais consenso e que o pessoal do Blackbird me falou é que se você é branco, use negro porque o termo preto muitas vezes foi (e ainda é) usado de maneira ofensiva, assim como o bicha pra os gays.

Caminhada SP Negra passa perto da Catedral da Sé - Foto: Henrique Carrara

Caminhada SP Negra passa perto da Catedral da Sé – Foto: Henrique Carrara

Hoje, nos apropriamos e nos chamamos de bicha ou bi/bee, mas a lógica de um branco chamar o outro de preto é a mesma do que um hétero me chamar de bicha. Tendeu? Se você tem intimidade com a pessoa, ok, mas se você é um estranho, não use, tá? 😉

Não fui o único a amar o tour. Mostrei um pouco da Caminhada SP Negra pelo meu Instagram Stories e recebi muito feedback positivo e muita gente ficou interessada em fazer. Espero que mais e mais gente conheça porque é muito necessário, como já falei, que evitemos esse apagamento.

Se você é uma dessas pessoas que se interessou, entre em contato com a Blackbird e vá fazer. É sensacional! 🙂

Fotos do dia que fui na Caminhada SP Negra

 

Tour Caminhada SP Negra

Ponto de encontro: Praça da Liberdade, 238, Metrô Liberdade – São Paulo
Valor: R$ 50
Duração: 3h
Percurso: 3,5km
Mínimo: 2 pessoas inscritas
Mais informações: site da Blackbird
Reservas: Diáspora Black

 

O Viaja Bi! fez o tour a convite da Blackbird Viagens. Todas as opiniões expressas aqui são independentes e refletem a real experiência como viajante.

 

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Sobre Rafael Leick

Rafael Leick

Criador dos projetos Viaja Bi!, Viagem Primata e ExploraSampa, host do podcast Casa na Árvore e colunista do UOL. Foi Diretor de Turismo da Câmara LGBT do Brasil. Escreve sobre viagem e turismo desde 2009. Comunicólogo, publicitário, criador de conteúdo e palestrante internacional, morou em Londres e São Paulo e já conheceu 30 países. É pai do Lupin, um golden dog. Todos os posts do Rafael.

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