É mais fácil vender a vida que viver
Assistir ao show do Ed Sheeran foi uma experiência mágica. E que me levou além. Não sou o maior entendedor de música, mas um apaixonado. E a música dele tem o mesmo efeito hipnótico sobre mim que as músicas do Coldplay e Muse têm. Elas destravam alguma coisa no meu cérebro e fazem ele divagar um tanto. Muitas vezes isso, somado ao déficit de atenção que eu certamente tenho, me levam para um universo paralelo. Meu outro eu deve vagar por alguma outra dimensão antes de algo me despertar de volta. E eu amo essa sensação. É ter o barato e a viagem sem precisar sair do meu estado de consciência com estimulantes.
Nesse cenário, de música hipnotizante e grafismos cheios de luz e texturas, uma das conversas que tive com meu amigo Rodrigo a caminho do show ficaram reverberando em outras dimensões durante o show. E eu chorei. Sem o menor pudor, sem um motivo aparente, meu peito encheu, a garganta travou e as lágrimas saíram.
Esse choro inesperado tem acontecido com uma certa frequência. Uma semana antes, quando soube que tinha chegado uma mensagem psicografada da minha bisa, não conseguia conter a emoção que chegava a doer. Eu não consegui e ainda não consigo muito entender. Sou frio até demais com determinados assuntos, mas outros, que são menores e mais simples, me tiram do prumo. E penso que talvez seja essa essência que preciso buscar novamente. Meu eu simples, que se emociona, que vive.
Nos últimos anos, minha vida praticamente toda tem se resumido ao trabalho. Seja o trabalho formal, em que respondo para chefes ou o trabalho de vários projetos que invento pra mim mesmo, que tomam muito do meu tempo. Nessa mensagem psicografada, minha bisa me disse: “tempo a gente arruma”. Ela falava de tempo para orações, mas eu interpretei além. Quem faz o nosso tempo somos nós. Os compromissos que eu me coloco, as prisões a que me submeto, os eventos que não posso deixar de ir, aquela mensagem que não posso deixar de responder ou até aquela pessoa que não posso excluir da vida. Não posso? Ou não quero? Nem eu sei. A gente cria nossa Matrix de um jeito tão específico que esquecemos onde fica a tecla ESC.
Tudo isso porque eu queria dizer que me sinto frio ultimamente. Frio ou racional demais. A cabeça tá tão preocupada com tudo o tempo todo, com tudo aquilo que criei para ocupar meu tempo, e me vejo sem o tempo de ser e de sentir. Faz tantos anos que mal sinto… E isso está prestes a mudar. Eu, graças a Deus (ou aos meus guias espirituais), estou perdendo o controle de mim mesmo. E num bom sentido. Não estou descontrolado. Mas estou deixando de ficar no controle. E é fora da zona de conforto que a mágica acontece. E eu demorei tanto pra poder enxergar.
Olha lá eu perdendo o foco novamente. Comecei o texto para falar dos outros. E percebi que preciso falar de mim mesmo. Essa emoção aflorada, que está começando a ficar latente me parece resultado de muitos anos guardando. As coisas não me emocionavam mais, não me tocavam de verdade. Justo eu, que era tão sentimental. O que aconteceu? Não sei exatamente dizer, ou talvez não queira pesquisar essa resposta dentro de mim.
Será que esse mundo digital que estamos vivendo não propõe isso, na maneira que estamos levando ele? Blog, por exemplo, começou como uma ferramenta de exposição de ideias. Um espaço livre, democrático, que vencia as barreiras das páginas impressas de uma revista. Uma mídia pessoal. Mas aí os blogs começaram a gerar interesse porque foram, antes desse termo ser cunhado, influenciadores digitais. As opiniões ali contidas tocavam a vida das pessoas. Era revolucionário.
Mas ele virou um negócio, pra mim inclusive. E perdeu, em sua maioria, o que tinha de mais precioso. A verdade, espontaneidade, a opinião. Eu tentei manter isso. Mas isso não vende mais. Hoje a preocupação ao escrever é em SEO, para ficar bem no ranking do Google, repetindo uma palavra-chave durante o texto, alternando sua forma de escrita. É saber em que categoria esse texto vai se encaixar, em que caixa você vai colocá-lo. A opinião está encaixotada!
Aí vieram as redes sociais. Era o lugar de ser mais solto e descontraído. Mas aí nossos pais entraram na rede. E nossa família. E nossos colegas de trabalho. E, finalmente, as marcas. Aí migramos pro YouTube, um espaço pra você colocar sua opinião e cara a tapa. Era o blog em vídeo, popularizou o vlog. Mas tudo isso que aconteceu com as outras redes, transformou a gente em youtubers. Essa caixinha vem com etiquetas e rótulos, prontos pra vender e vender. A aparente união, principalmente nas grandes cidades, é, por baixo dos panos, concorrência ferrenha. Um grava com o outro que é um grande amigo, mas em uma viagem, com outros também selecionados por uma marca, fala mal desse mesmo amigo. Vira uma coisa de louco que não cabe na minha cabeça, talvez provinciana demais.
As marcas são as que pagam as contas dessa galera, da qual também faço parte, e alimentam os monstrinhos sociais que fazem a gente transformar nossa vida em produto. Porque ela não tem mais graça por si só e os novos formatos barram os que querem produzir conteúdo sobre um tema específico e não sobre a própria vida, sobre si mesmo. Porque, afinal, o que vende agora é se conectar com o público. A audiência é influenciada por aquela pessoa que faz um vídeo intimista e tocante, olhando no olho do seu público. E ao desligar a câmera, compartimentou um pedaço da sua vida e intimidade para mostrar isso pra tanta gente. Não deu tempo nem de refletir sobre. Porque a fala sobre sentimentos tão profundos dividia atenção com a luz, com a câmera, com a bateria, com o tempo de fala, a edição do vídeo e os comentários que vieram depois.
Ao mesmo tempo que isso soa tão bizarro, é difícil hoje achar amigo em carne e osso que queira falar sobre essas coisas e divagar sobre a vida e nossa existência. Não dá tempo… A gente tem milhares de temporadas de séries para colocar em dia. Milhares de vídeos pra assistir e milhares de textos para ler. Por isso, é mais capaz de essa mensagem chegar nas pessoas através desse texto do que numa eterna tentativa de marcar um café ou numa eterna expectativa daquela ligação que nem eu quase nunca faço “só para saber como você tá”. É, portanto, entendível que as pessoas busquem mais colocar conteúdo pessoal na Internet e vivam menos o reencontro tátil.
Está mais fácil vender a vida que viver. E eu ainda não sei lidar com isso.
6 Comentários
Ana Beatriz Maldonado
Amei o texto Rafa, infelizmente essa é a realidade… precisamos arrumar mais tempo um para os outros e não só através de uma tela.
Rafael Leick
E depende só da gente… 🙂
Juliana
Adorei o texto, pra mim tem sido um desafio interagir ao vivo e olhar nos olhos das pessoas….parece que nunca dá tempo mesmo, mas neste final de semana deixei o celular em casa e saí com meus pais, foi bem legal, back to the 90’s. Temos que fazer um esforcinho sempre, pois rede social e tecnologia é viciante, e principalmente quem tem blog precisa se esforçar pra não trabalhar 24h por dia.
foi uma ótima leitura pra mi, continue escrevendo, mas não vai perder o tempo livre hahaha
Rafael Leick
Oi, Juliana. Eu adoro fazer essas coisas de esquecer o celular por umas boas horas ou até uns dias. E a gente, trabalhando com isso, é mais difícil ainda desconectar. Ou ficar conectado mas para conectar de verdade, na vida real, e não ficar só ali no virtual. Valeu pela visita, pelo elogio, pelo incentivo e por comentar! Volte mais vezes. 😉
Fabia Fuzeti
Ai Rafa, sofro com isso tudo também… maldito capitalismo… e fico triste e desesperada pois não vejo saída. O mundo tá todo errado. Muito errado.
Mas pelo menos aqui em BCN a gente consegue encontrar bastante os amigos, saímos sempre para tomar algo e conversar sobre tudo, inclusive sobre isso. Já é um alívio e pelo menos sentimos que estamos vivendo.
Beijos
Rafael Leick
Dá um certo pânico mesmo, porque parece que não tem luz no fim do túnel. Mas a mudança também está na gente, sabe. Se não nos entregarmos a isso, se formos resistentes à tecnologia apesar de abraçá-la, acho que chegamos lá…
A Europa tem um pouco menos de virtual é mais de real, contato humano. Espero que isso o Brasil também importe. 🙂
Beijos